sábado, 8 de agosto de 2009

A alma que não se vende

Transcrevo um texto de *Lúcia Maria Teixeira Furlani que descreve um pouco da vida Patrícia Galvão - Pagu. Desde 12 de dezembro de 1962, muitos anos já se passaram de sua partida. Não por acaso, foi em Santos, terra onde adorava viver e teve destacada atuação cultural na década de 50, que ela morreu. Patrícia Galvão, ou simplesmente Pagu, viveu literalmente cercada pelas palavras. Em sua trajetória de vida e obra (1910-1962), das palavras valeu-se como jornalista, crítica de letras, artes, televisão e teatro, poeta-desenhista, romancista, política militante, dissidente política, incentivadora cultural, mulher precursora e revolucionária. Foram as palavras que estiveram presentes em suas colunas de jornal de 1929 a 1962, para divulgar os grandes renovadores da linguagem. Foi através dela que autores desconhecidos no Brasil e alguns até no restante do mundo ganharam vida e espaço. Em Santos, incentivou o teatro amador, fez campanha para a construção do Teatro Municipal (instalado hoje no Centro de Cultura que leva seu nome), traduziu e dirigiu teatro de vanguarda, fundou a Associação dos Jornalistas Profissionais e a União do Teatro Amador, que revelou tantos artistas depois consagrados em teatro e televisão. Participou ativamente de movimentos políticos e culturais importantes que afetaram nosso País e o restante do mundo, a partir do Modernismo e da utopia que o caracterizou. Na década de 30, Pagu e seu companheiro Oswald de Andrade deram tratamento literário à luta política e ideológica na qual se engajaram. É Pagu, mulher livre e libertária, quem fez Oswald participar de caminhos revolucionários, que teriam expressão no Jornal Homem do Povo, dirigido por ambos e no romance Parque Industrial, escrito por ela. Artigo originalmente publicado no Jornal A Tribuna, por ocasião do 40º aniversário de falecimento de Pagu Pagu, que se engajou na militância política, no Partido Comunista, que deu a volta ao mundo, sozinha, como correspondente de diversos jornais. De passagem pela China, obtém as primeiras sementes de soja que foram introduzidas no Brasil. Foi presa vinte e três vezes, por motivos políticos, sendo a primeira mulher presa no Brasil na luta revolucionária: em 1931, em Santos, na greve dos estivadores; em Paris, como militante comunista estrangeira e ao voltar ao Brasil, de 1935 e 1940, sofrendo torturas, além de perseguições dos companheiros do partido. Ao sair da prisão, rompeu com o PCB e casou-se com Geraldo Ferraz. Ao lado dele, participou da revista Vanguarda Socialista, escreveram a quatro mãos o romance A Famosa Revista, integrou a equipe de diversos jornais. Nesta fase, aderiu a dissidência trotskista. Concorreu à Assembléia de São Paulo pelo PSB, mas não se elegeu. Lançou o manifesto Verdade e Liberdade, no qual ataca duramente o Partido Comunista. Passa, depois, a defender um socialismo libertário, pacífico, democrático e espiritualista, quando vemos aparecer em seu texto palavras derivadas da fraternidade cristã. Antecipou-se ainda mais uma vez e fugiu do maniqueísmo político da época. Denunciou tanto o autoritarismo da direita como o da esquerda. Em seus 52 anos de vida e buscas, não lhe faltou visão, ou seja, a arte de ver coisas invisíveis. Para homenagear alguém avesso a homenagens, formalismos e academicismos, podemos dizer hoje a ela que se pode enterrar a liberdade, mas não se pode matá-la. Você, Patrícia, lutou pela liberdade, foi presa e sofreu por ela. Mas vida e morte são temporárias. A liberdade é eterna. Devido ao seu jeito de agir, vestir e viver, muitos a chamaram de estranha. Mas, quando somos um pouco estranhos, podemos fazer coisas impensáveis e até inadmissíveis por aqueles presos às convenções. Pois viver é a coisa mais rara do mundo. Como disse Oscar Wilde, a maioria das pessoas apenas existe. Você ultrapassou o métron , para os antigos gregos, a justa medida de cada um. O métron é medida subjetiva que vem dos primórdios do pensamento ocidental. Ultrapassá-lo significa arriscar além da conta. Foram tantos os riscos, muitos os tropeços. Você pode ter perdido muitas coisas. Mas, às vezes, quando se perde, na verdade, estamos ganhando. Por tudo isso, Pagu, não podemos dizer que, desde 1962, estamos sem sua presença, pois nos ficou sua alma. Como diria Rubem Braga, no fundo, talvez não seja bom negócio vender a alma. A alma sempre nos faz falta. A sua torna-se imprescindível hoje, quando a tecnologia cria pontes tão compridas que não se sabe onde vão dar. O saber de muitos diminui, torna-se específico. Não temos ainda instrumentos que resolvam o conflito entre carência e desperdício. Muitos possuem muitas coisas que outros não têm, não terão e isso não os irmana, antes os separa. Mas nem tudo está perdido. As perguntas essenciais continuam sendo feitas pelas crianças. Cresce o número de jovens e pessoas voluntárias, preocupadas em corrigir desigualdades e distribuir amor. O Brasil é hoje muito mais convicto dos valores democráticos do que há tempos atrás. Ainda podemos curar qualquer mal na água salgada, seja ela suor, lágrimas ou um mergulho no mar. No mar da escandinava Dinesen, ou no mar santista, de Pagu e de todos nós. Você talvez nos surpreenda mais uma vez, respondendo que hoje sua melhor homenagem seria a vaia. Vaia que, no dizer de Nelson Rodrigues, é a verdadeira apoteose, pois os admiradores corrompem. Ou as vaias que salvaram a Semana de Arte Moderna, em 22, e deram-lhe o ar de juvenil travessura responsável por seu eterno encanto. Vaias, segundo a lenda, encomendadas por Oswald de Andrade que, com esse golpe de gênio, fez a Semana durar até nossos dias. Mas você nos deu sua alma e nós, lhe entregamos hoje, ao invés da vaia apoteótica, o nosso coração. Não se ganham corações de presente. Corações, só os recebemos, por merecimento. (*) Lúcia Maria Teixeira Furlani é autora de diversos livros, entre os quais Pagu, doutora em Psicologia da Educação e Diretora Presidente do ISESC, que mantém o Colégio e a Universidade Santa Cecília (Santos-SP).

Um comentário:

Beatriz Levischi disse...

Simba e Chocolate estão se achando, Gloria! rs